quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

22:22

Começou a ventar forte, o vento esbarrava no vidro do carro. Um cachorro latiu e foi silenciado pelo som crescente das folhas das árvores batendo em si mesmas. Era noite. Uma pessoa saiu de um carro com náuseas. Uma porta bateu em algum lugar longe, longe o bastante para parecer mentira e ainda assim ser ouvida. Um carro passou lentamente na rua, rente à calçada. O vento empurrava a pessoa, que caminhava apressada segurando-se aos seus cabelos. Um monte de papel usado formava um redemoinho determinado em um canto sujo. Vultos no escuro. Uma pessoa olhou em volta, procurando rostos?, que rostos.. Essa pessoa chegou, enfim, entrou intrusa na própria casa. Correu até a janela, abriu -vento - olhou para baixo. Lá estava o carro, acelerando em direção contrária. Aquela pessoa continuou olhando o meio-fio e percebeu que perdera o foco, percebeu que sentia mais alguém ali, alguém no vento. A rua era banhada pelo luar doentio, reluzindo a cor duvidosa do asfalto molhado. Uma outra pessoa, em uma outra janela, tapava os olhos com as mãos.

Faminto

Olhos de corvo me pegam desprevenida quando acordo de madrugada. Asas de corvo batem famintas, e fazem um rebuliço selvagem na minha querida, partida, vontade de esquecer. Patas de corvo polidas, buscam, famintas, minha esperança moribunda, de enfim parar de me preocupar com meu magnífico destino, meu pretérito contundente.

Eu olho para o corvo de olhos ardentes, asas e patas decididas, e só então enfrento meu medo das memórias; aquelas que te encaram encardidas no canto do quarto, no espelho retrovisor do carro. No minuto seguinte, pisco para meus olhos incinerados, e, paradoxalmente, enfrento meu medo de me perder entre voos vazios de um futuro carente. 

Eu lembrei dele, o corvo que morava em mim, lembrei dele no meu coração e no meu pulmão.
Senti suas asas batendo dentro do meu peito, seu canto esganiçado ressoando no meu pensamento como uma lamúria aguda. Eu era hóspede de suas penas negras. E eu senti saudade dele. Um outro, que saiu pela minha garganta, pelos meus olhos, pelos meus poros, e se pôs a voar um voo viciado, migrando entorpecido para onde quer que seja o destino dos sentimentos sentidos.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Miopia

"Lembre-se dessa noite. Lembre-se, por favor." Hoje eu lembro, lembro tanto que quase consigo reviver aqueles momentos, aquela noite, aqueles dias. Quase. Lembro e não devia.
Eu costumava olhar nos olhos dele e jurar para mim mesma que não me deixaria esquecer, que não podia fazer isso comigo mesma. Porque aqueles dias foram mais para mim do que todos os outros anos e meses e horas. Eu conto nosso tempo juntos em memórias.
Mas hoje, eu estou longe. Minha miopia me nega os detalhes que eu sempre soube que faltariam, que eu tentei guardar como pude, eu tentei mas eles me escaparam pelos dedos. Toda noite eu sonho com ele, eu sei que não superei os olhos azuis, eu sinto o gosto seco da falta de ar que essas memórias me causam. Toda noite desde então eu sonho com a nossa despedida, com o inevitável que acabou acontecendo, mas não parece verdade. É como estar distraída aos tirar os brincos e deixar um deles cair pelo ralo da pia do banheiro. Acontece rápido, quando vê já foi e é isso. É como sentir o copo deslizando pela sua mão, você sente a queda iminente mas não a evita, somente para se arrepender o último minuto.
O vento me acordou destes sonhos essa noite. Ele passava pela minha janela e eu pensei em você. Eu estou aqui, mas me sinto distante de mim mesma, do meu quarto, de tudo. Sinto-me tonta. Levanto para fumar um cigarro e me conforto na visão da fumaça macia subindo pela minha mão, mas eu ainda me sinto nula comparada à força da sua ausência. Meus olhos ardem ao olhar para cima e procurar alguma estrela no céu escuro e nublado dessa cidade que não é mais minha. E eu voltei para cama. Digo para mim mesma que pelo menos mais uma noite seria o suficiente mas sei que é mentira.
Lembro de você naquele restaurante, estava frio lá fora, era Dezembro. Lembro daquele dia quando você me convidou para conhecer seu gato. Nosso café, onde parecia que cada parede e mesa tinha seu nome. Mas minha miopia esconde, eu vejo nublado e não sei mais o que perco. Quero fechar os olhos e lembrar por inteiro mas sem você perto é como o negativo de uma fotografia, como as palavras de um filme mudo.

quinta-feira, 27 de março de 2014

24h

Ele acordou para abrir os olhos e ver que o travesseiro no qual estava deitado não era o seu. Os lençois que emaranhavam suas pernas também não eram seus, tanto quanto o quarto e a mobília eram estranhos. Sua mão, quase que movida por uma força própria que fugia do resto do seu corpo, subiu até seus olhos, para esfregá-los metodicamente. Se ele decidir levantar para abrir as cortinas, não só a luz desconfortável da manhã feia de sua cidade invadiria seu quarto, como o barulho dos automóveis. Mas em lugar algum, digo, além do quarto, ele estaria tão ciente dos seus passos até aquela cama; seu passado. Em qualquer outro lugar, ele teria alguma chance de não ser nocauteado. Que se levantem as pernas, então, naquele andar sem chão do dia a dia. Café da manhã, banho, rua. Hoje gritaria como um recém nascido...

Avelã


Entregou os braços ao vento, que soprava forte, levando também seus cabelos cor de avelã. E seus olhos ardiam ofuscados pelo sol, a pele queimava. Ela podia ouvir o som de uma guitarra que ronronava como um felino, profanando acordes sonolentos. Sentia todas as sombras escondidas nas pequenas frestas entre as árvores frondosas.
Ela via o mundo plano e perolado. Jurava que fazia moda sendo assim, clemente de solidão. Gotículas de suor mostravam-se timidamente em sua testa. No crepúsculo, os raios de sol perdiam força, ficando mais fracos gradualmente. Já era noite de novo, e tudo nela esfriava; a pele, o olhar e o coração.
"Então chegou a hora", suspirou. Arrastada, ela vagou inerte entre os campos de trigo, penetrando ingenuamente na noite, à caminho da cidade.
Era hora de matar de novo...

Saber

Meu amor, você é um espelho, um cigano.
E eu te tenho em mim, por encanto.
Aconteceu e eu não sei se te chamo,
ou me calo e te espero num canto.
Simplesmente te quero, de um tanto,
e continuar desse jeito é um engano.

Eu preciso saber de você,

que te amo sem medo, sem pranto.

Mariposa Refletida

Ratificada, ela meramente fitava o espelho, absorta na imagem traduzida de uma menina fraca e escassa;
de sua boca lhe escorria ferrugem,
de suas unhas, escorria o caos,
e, dos seus olhos, nada. Inundados de secura.

Ela imundamente existia.
Estudava a epifania clara
naquele conjunto de prata com vidro;
um amor efêmero, doce, ardente, vermelho.

Corpo Doente.

Apenas uma menina, mas compreendia,
ao contemplar-se nua,
sua esquizofrenia.

Ela suportava a memória pungente,
que
escorria.
Memória de um passado sádico,
a encará-la, gemendo indecentemente,
espelhado.